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terça-feira, 6 de julho de 2010

Assistência social na casa espírita - I

Ontem, 04/07/2010, foi um dia muito especial. Participei do Encontro de Trabalhadores da Casa Espírita Cristã Maria de Nazaré e preciso dizer que foi muito importante para a construção de uma visão mais moderna a cerca do papel social desempenhado pelas casas espíritas, em especial pela nossa casa na comunidade da Rocinha.

Em sua exposição o palestrante apontou mudanças consideráveis no perfil do público atendido em ações sociais nos últimos 50 anos, bem como na forma de entender pobreza e de fazer assistência social. A reflexão foi concluída com pensamentos a cerca do entendimento do termo caridade em suas múltiplas formas e por um convite ao pensamento conjunto sobre a questão de promoção social.

Tentarei, nos próximos parágrados, apresentar a linha condutora que consegui apreender da palestra.

Quase meio século após o lançamento das primeiras bases da Casa Espírita Cristã Maria de Nazaré na Rocinha, Rio de Janeiro/RJ, muitas mudanças aconteceram, a começar pelos valores culturais que caracterizam o grupamento social que, em seu início, era composto por imigrantes, principalmente nordestinos, que procuravam melhores condições de trabalho e renda. A luta contra a pobreza era eminentemente em busca de recursos para a manutenção das necessidades básicas das famílias, estruturas comandadas pelos homens que trabalhavam na área da construção civil, como porteiros ou em atividades que exigissem baixa escolaridade. As mães mantinham-se em casa cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos e havia uma estrutura familiar quase hierárquica de comando que mantinha a ordem e facilitava a disseminação de orientações e instruções, além de manter um rígido controle sobre os hábitos e costumes.

Hoje, duas gerações mais tarde, é possível identificar mudanças muito marcantes no aspecto cultural, em parte promovidas pelo acesso ao estudo, pela revolução feminina que levou a mulher para o trabalho e a libertou sexualmente, pelo atendimento às necessidades básicas através de programas do governo e do aumento do padrão mínimo de renda, pela nova organização familiar, que foge do modelo europeu do século XIX e até mesmo pela influência trazida pela mídia na composição de uma nova sociedade, midiática, e norteadora de desejos, anseios e formas de consumo em que mais do que a necessidade de consumir, o sujeito é caracterizado pelos símbolos que ostenta.

A legislação trabalhista, a constituição de 1988, o fim da ditadura, a liberdade de imprensa, o surgimento dos shoppings como alternativa ao lazer nas praças e parques, o grande estímulo ao consumo, a visão de progresso associada à capacidade de consumo, a pílula anticoncepcional, o reconhecimento dos direitos do cidadão e a importação de idéias como as de cidadania e liberdade trazidas pelos exilados políticos que retornavam ao Brasil após a ditadura são alguns dos exemplos/estímulos/comprovações das profundas mudanças nos paradigmas político, social, econômico e cultural que eram percebidos há 50 anos.

O aumento da complexidade nas relações sociais, a ampliação da capacidade de produção e o surgimento de novas formas de pensar o consumo, entre outros fatores, trouxeram também a necessidade de repensar o conceito de pobreza, antes entendido de forma unidimensional e amarrado à maior ou menor facilidade de suprir as necessidades básicas da vida (alimentação, saúde, higiene).

Pela visão moderna o indivíduo passa a ser considerado pobre quando está excluído da condição mínima de manifestar-se na sociedade(necessidades do ser, do estar, do fazer, do criar, do saber e do ter), mesmo que tenha suas necessidades básicas atendidas. A sociedade passa a ver pobreza sob uma perspectiva multidimensional, associada à incapacidade de atender a um ou mais fatores de manifestação da individualidade no coletivo. A pessoa não se sente mais incluída na sociedade, a não ser que consiga atender a algum padrão de manifestação socialmente aceito.

Juntamente com a nova visão de pobreza, nascem também as idéias de segurança social e da responsabilidade que o estado tem em garantir o acesso a esta para todos os grupamentos familiares, a célula básica do novo entendimento social. As famílias passam a ter seu direito social garantido através de ações governamentais preventivas ou corretivas, definidas em vários níveis de ação, e que são apoiadas pela iniciativa privada e pelo terceiro setor.

Neste novo cenário as ações de apoio social, antes religiosas ou filantrópicas, ganham o olhar governamental que visa assegurar o total respeito aos direitos da família através de legislações específicas, de planos diretores, do apoio de verbas públicas, de movimentos de pesquisa e da coordenação de projetos sociais em todos os níveis de atendimento, desde a prevenção até o apoio de indivíduos que perderam seus vínculos familiares.

A participação da sociedade em todo o processo através de fóruns deliberativos abertos de debate, da escolha dos governantes e do pagamento de impostos passa a caracterizar as bases de um processo democrático participativo em que o sujeito tem seus direitos plenamente respeitados através da manutenção de políticas públicas que integram os diversos setores da sociedade e visam evitar/mitigar as situações de risco social.

É neste universo que surge o grande desafio para a Casa Espírita Cristã Maria de Nazaré e todas as outras instituições espíritas que realizam atividades na área de assistência social. Como manter a identidade através da propagação de seus valores e, simultaneamente, respeitar as idéias e diretrizes propostas pelos novos modelos de apoio social criados pelo estado?

Neste ponto tornou-se vital repensar o entendimento do que é caridade, conceito que talvez careça de uma apropriação mais próxima dos ideais cristãos por parte de todos, ou seja, torna-se necessário ampliarmos o entendimento da questão.

Talvez as pessoas e instituições, materializadas através da figura dos voluntários, estejam distanciando-se do aspecto subjetivo da caridade, que propõe o relacionar-se com o outro através da percepção do outro como um irmão em favor de ações materiais de apoio ao indivíduo, sem a real preocupação quanto à abertura de espaço para que o outro possa expressar-se, manifestar-se, incluir-se, desta forma, no processo social do qual faz parte.

Quando olhamos para a caridade sob este aspecto de pensamento, facilmente identificamos uma comunhão de objetivos com as propostas do estado quanto à propagação do direito social, uma abordagem ética que visa o bem estar comum através do respeito à individualidade.

Talvez o grande desafio das casas espíritas neste novo século seja o de direcionar suas ações sociais rumo ao encurtamento da distância entre assistidos e voluntários através do entendimento de que somos todos seres humanos portadores de desejos e necessidades, criaturas imortais que lutam lado a lado para a construção de uma sociedade mais justa, ambiente saudável para a manifestação de inteligências, construção de sentimentos e materialização de progresso social.

Convido a você a pensar nestas questões.

Será que estamos todos realmente envolvido em ações de caridade?

Até onde já conseguimos praticar a caridade moral?

O que seria segurança social? Qual o nosso papel na construção de ambientes socialmente seguros?

Um comentário:

  1. Muito bom Guilherme.
    Em minhas ações tenho tentando trazer como lema uma frase de Dom Helder Câmara que é mais ou menos assim: "trabalhar para o povo é fácil, trabalhar com o povo é o desafio." Com todo respeito e admiração aos trabalhos de tantos companheiros, mas preciso dizer que tenho horror a palavra assistido. Já dá uma conotação de distância entre o que assiste e o que é assistido. O ideal é trabalharmos juntos. Todos tem voz e liberdade de ação. Amo a palavra irmãos (filhos de mesma mãe), companheiros (os que partilham o pão). Mas, independente do nome, fazer isso na prática é o desafio. Não tem receita de bolo, é o desenvolvimento de nossa sensibilidade democrática e dialogal. Creio mais na sensibilidade do coração que nos textos de projetos e organogramas. Então vamos tentar fazer.
    paz e bom trabalho!
    André

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